Sunday, June 10, 2007

Uma pedra no sapato de Putin

Viúva e amigo do ex-agente russo assassinado acusam o Kremlin de ter dado a ordem
Gabriella Dorlhiac e Pedro Doria
Na tarde do primeiro dia de novembro do ano passado, o ex-agente da KGB Alexander Litvinenko passou mal. Ele, sua mulher Marina e o filho viviam em Londres desde 2000, quando conseguiu asilo político. Sua saúde piorou, piorou - até que, após três semanas agonizando, morreu.
Segundo a Scotland Yard, Sasha Litvinenko foi envenenado com Polônio-210, uma substância altamente radioativa, por seu amigo Andrei Lugovoi, um milionário russo que também pertenceu à KGB. Traços da mesma substância foram encontrados em vários dos locais pelos quais passou Lugovoi antes de seu encontro com Sasha. O governo britânico pediu sua extradição, os russos a negaram. Ele é o único que pode dizer quem encomendou o assassinato.
"Foi Vladimir Putin", diz Marina Litvinenko, nesta entrevista ao Aliás. Ela é autora, junto com Alex Goldfarb, amigo do casal, de Morte de um Dissidente, livro que será lançado mundialmente no próximo dia 14 (a edição brasileira é da Companhia das Letras).
O argumento de Marina e Goldfarb é simples. Polônio-210 é muito caro, muito raro, e nem a própria FSB - sucessora da KGB - tem acesso a ele sem autorização expressa da hierarquia mais alta da república. Litvinenko, o assassinado, além de ter repassado segredos de Estado para a CIA, era ligado a Boris Berezovski, um dos principais inimigos políticos de Putin.
Mas o ex-agente tinha outros inimigos. Na própria agência, por exemplo, que não costuma ver com bons olhos os desertores. Na máfia, que investigou a fundo durante os anos 90. Entre políticos que acusou de corrupção. Andrei Lugovoi, que os britânicos acusam pelo assassinato, se diz inocente e sugere que o mandante tenha sido Berezovski. Sua teoria diz que, matando o amigo, o magnata poderia acusar Putin e angariar apoio político.
É uma história complicada do tipo que lembra romances de espionagem dos tempos da Guerra Fria. Mas uma história real - durante a entrevista, por telefone, Marina teve de interromper enquanto falava para segurar o pranto. A perda repentina e brutal do marido ainda lhe dói profundamente.
Como a senhora tem vivido?
Marina Litvinenko - Escrever este livro acabou me ajudando muito a lidar com este momento. Fomos para a Inglaterra porque Sasha quis nos proteger do perigo da FSB. Ele recebeu mensagens que alertavam que nosso filho Anatoly e eu seríamos responsabilizados por tudo que Sasha havia feito contra a FSB. Nos sentíamos muito seguros na Inglaterra. Sasha conseguia pressentir o perigo, dizia que sentia na sua pele. No ano passado, quando o Parlamento russo aprovou uma lei que permitia o assassinato de inimigos da Rússia, Sasha ficou preocupado, mas pensava mais nos outros do que nele. Quando ficou doente, eu tinha certeza de que iria se recuperar. Mesmo no hospital fazíamos planos para o futuro. Ele não podia comer, beber e mudou drasticamente. Passou de um homem atlético e bonito para uma pessoa 30 anos mais velha. Agora o que tento fazer é preservar sua memória... (ela faz uma pausa emocionada) Mesmo hoje não tenho seguranças, não quero ter que ficar olhando por cima do ombro e ter medo de começar a sair na rua. O mais importante é manter um estilo de vida o mais normal possível para meu filho. Ele merece. Anatoly está com 13 anos. Perdeu o pai numa fase em que sua presença seria muito importante. Ele se sente responsável por mim, sempre me pergunta como estou. Mas ainda é um menino. Nos últimos tempos, tem falado, gesticulado, de forma muito parecida com o jeito do pai. Às vezes é difícil ver isto, seu marido em seu filho.
Anatoly pretende voltar à Rússia um dia?
ML - Ele sempre gostou muito da Rússia. Seus avós ainda moram lá. Ele fala russo fluentemente, tem muitos amigos russos. Mas, infelizmente, agora, ele se recusa a ir para a escola russa. Não quer freqüentar os acampamentos para jovens russos em outros países. Isso me entristeceu muito. Espero que ele se recupere disso. Continuarei conversando com ele sobre uma Rússia diferente, sobre a nossa cultura, esportes, tudo. Talvez assim ele volte a ver os russos de maneira positiva novamente.
Como está a investigação?
ML - Há duas semanas, tive um encontro com o embaixador russo aqui em Londres. Ele me disse que a Rússia fará tudo de acordo com os trâmites democráticos. Se for o caso, espero a extradição de Andrei Lugovoi, conforme pedida pelo governo britânico. Não foi apenas o assassinato de um dissidente. Foi um assassinato em solo britânico, usando material radioativo, um ataque terrorista contra um cidadão britânico. Ele cometeu um crime em solo britânico e deve ser julgado aqui.
Alex Goldfarb - Nada acontecerá na Rússia porque tudo o que havia para acontecer já ocorreu no momento em que o governo Putin foi estabelecido. O fim do mandato de Putin está para vir, mas como não há liberdade no país, o próximo governo a ser eleito permanecerá controlado pelo mesmo grupo dos serviços de segurança. Se algo acontecer, isto será por conta de pressões externas, quando outros países começam a questionar, por exemplo, o assassinato de dissidentes como Sasha Litvinenko. Mas, para Marina, esta questão não é geopolítica. Trata-se de um assassinato. Mesmo que Vladimir Putin fosse o último democrata do mundo, como ele sugeriu esta semana, ainda assim seria um assassinato. A Scotland Yard descobriu provas que ligam Andrei Lugovoi a este assassinato. No livro, argumentamos, embora indiretamente, que o governo russo está por trás deste assassinato. A principal diferença entre a Rússia de agora e a União Soviética é que nos tempos soviéticos o regime estava em função de uma ideologia e era controlado por um Partido. Naquele tempo, o serviço secreto obedecia às ordens da liderança do Partido. Hoje o governo é capitalista e não tem ideologia. Ele não é tocado por uma doutrina e sim por um grupo de oficiais do serviço secreto que estão lá pelo poder e pelo dinheiro. Um grupo que manda num país carregado de armas nucleares e que é um exportador estratégico de combustível.
ML - Deixei a Rússia há sete anos. O país mudou muito e não apenas negativamente. Pelo menos metade das pessoas que compõem o atual governo vieram da KGB. Mesmo russos que moram aqui em Londres, você percebe, têm medo de criticar o governo. Jornais e televisões foram fechados. Gostaria que, em todo o mundo, tivessem uma boa impressão da Rússia, mas isto não acontecerá enquanto este regime estiver no comando.
O livro indica que vocês estão convictos de que o governo ordenou a morte de Litvinenko.
AG - Há muitas teorias e muitos motivos possíveis para justificar a morte de Sasha Litvinenko. Andrei Lugovoi não tinha qualquer motivo para matá-lo. Ele não tem ambições políticas, é muito rico, então ele não agiu por si e sim sob as ordens de alguém. Há teorias até de que nosso amigo Boris Berezovski estaria por trás disso. A questão chave, aqui, é o uso do Polônio. Este é o principal argumento que aponta o Kremlin como mandante. Esta substância não está à disposição de quem quiser. Nem a FSB tem acesso sem permissão do mais alto nível do governo. É uma arma de destruição em massa: um grama de Polônio pode matar um milhão de pessoas. Se fosse algo fácil de contrabandear para fora da Rússia, já teríamos visto polônio na mão de terroristas. Há círculos de criminosos na Rússia conhecidos pelo tráfico de armas, mas jamais se soube de polônio chegando às mãos de ninguém. De minha parte, posso afirmar que, ironicamente, eu e as pessoas que freqüentam meu círculo nos sentimos mais seguros, porque se não tivessem encontrado o polônio e o assassinato ainda fosse um mistério então realmente estaríamos em perigo. Mas como o plano não funcionou e o polônio foi descoberto, o assassinato causou um escândalo que envergonhou a Rússia.
É possível caracterizar a Rússia como um Estado renegado?
AG - Este assassinato não foi uma tentativa de ataque contra o Ocidente do tipo que esperaríamos de um estado renegado como Irã ou Coréia do Norte. É um assassinato que tem origem dentro da política interna da Rússia, mais especificamente, a rixa pessoal entre Putin e Berezovski, de quem Sasha era amigo. O fato de terem a coragem de usar algo tão perigoso como uma substância altamente radioativa, que poderia ser usada em uma bomba suja, em solo britânico, nos diz algo sobre a natureza deste regime. Hoje, a Rússia está numa área cinzenta. Se o Irã tivesse cometido o crime, todos diriam que é um Estado renegado. Se fosse a Holanda, ninguém pensaria nisso. A Rússia deixa todos em dúvida.
A corrupção e a máfia são parte do cotidiano russo. Investigar estas conexões era o trabalho de Litvinenko nos anos 90. Esses dois aspectos estão ligados à FSB e, por extensão, ao governo nacional?
AG - O problema começa nos anos 90. A atuação da máfia diminuiu muito na Rússia porque os criminosos se tornaram ricos e querem proteger seu capital. A FSB gradualmente tornou-se um ator político. Na última década, especialmente sob o comando de Putin, a FSB transformou-se lentamente de uma agência corrupta para uma agência que controla o governo. Neste processo, pessoas ricas passaram a ser controladas pelo governo FSB. Os que se opuseram foram destruídos, levados à falência ou tiveram que fugir do país. Berezovski é um dos que se tornaram ricos durante as privatizações e se recusaram a jogar com as novas regras. A cada dia a Rússia se parece mais com uma república de banana. A corrupção está cedendo lugar à ditadura, mas de certa maneira é a verdadeira corrupção.
Seu amigo Berezovski não é muito popular na Rússia. Muitos o vêem como alguém que se aproveitou na era das privatizações.
AG - Há uma campanha persistente para responsabilizá-lo por todos os problemas do país. Sobre a onda de privatizações nos anos 90, acho que não podemos mais analisar se foram justas ou injustas. A Rússia tem hoje o segundo maior número de milionários do mundo, atrás dos EUA. Todos eles conseguiram sua fortuna por meio da distribuição dos bens do governo. O problema com Berezovski é que ele provavelmente é um dos poucos milionários que tentaram usar sua fortuna para criar uma mídia independente e manter algum tipo de pluralismo político na Rússia. Berezovski está em Londres com todos os seus problemas porque se recusou a abrir mão do controle da sua TV (ORT) quando Putin lhe ordenou que o fizesse.
SEGUNDA, 4 DE JUNHO
Russo se diz ‘o democrata’
Em meio às críticas em relação à democracia em seu país, o presidente russo Vladimir Putin afirmou, às vésperas do encontro dos líderes do G-8, que é "o único verdadeiro democrata" do mundo. Ele criticou, principalmente, a política externa dos Estados Unidos.
(O Estado de S. Paulo, Aliás, 10/06/2007, p. J-3)