Sunday, February 12, 2006

Rússia Sociedade Anônima

Andrei Illarionov*

A Rússia de hoje não é o mesmo país que era há apenas seis anos, quando Vladimir Putin se elegeu presidente. Naquela época, o país estava desorganizado, tumultuado e empobrecido, mas era livre. Hoje, a Rússia é mais rica - mas não é livre.

Um novo modelo de Rússia tomou forma. O Estado se tornou, fundamentalmente, uma corporação que seus proprietários nominais, os cidadãos russos, já não controlam. Aliás, as mudanças de legislação e as restrições às liberdades políticas na verdade desvalorizaram as ações dessa companhia - podem chamá-la Estado Russo - que os russos comuns detêm, enquanto a classe da elite, dos investidores, desfruta de privilégios cada vez maiores.

As empresas estatais se tornaram as armas de assalto desse Estado corporativo. Tendo dominado o princípio básico do corporativismo-estatal - "privatizar o lucro, nacionalizar o prejuízo" - elas trataram de adquirir o controle de empresas do setor privado, às vezes, a preços vis. Suas vítimas incluem grandes empresas industriais como a Yuganskneftegaz, Sibneft, Silovye Mashiny, Kamov, OMZ e Avtovaz.

As companhias que ainda estão em mãos particulares se parecem cada vez mais com suas irmãs estatais. Qualquer pedido do Estado - seja a doação para um projeto ou a venda da própria companhia para "corrigir" os compradores - é atendido. Todos conhecem o destino de Mikhail Khodorkovski, o principal executivo da companhia petrolífera Yukos, que hoje se encontra numa colônia penal depois de cair em desgraça junto ao Kremlin.

Um ponto fundamental do novo modelo econômico da Rússia é a seletividade. Uma empresa enfrenta a maior (e às vezes inviável) carga tributária possível; outra recebe isenções incomparáveis.

Uma empresa é proibida de vender ações a estrangeiros; outra recebe um apoio extraordinário do Estado para isso (além de financiamento ilimitado estabelecido por lei).

Uma companhia não tem permissão para contratar trabalhadores estrangeiros; outra é encorajada a fazê-lo. Um conjunto de compradores paga um preço; outro paga cinco vezes mais.

Não foi apenas a liberdade econômica que desapareceu da Rússia. A liberdade política também. No ano passado, a organização de direitos humanos Freedom House deslocou a Rússia do grupo de países "parcialmente livres" para o grupo de "não livres", que inclui Camboja, Ruanda e Sudão.

Politicamente, a ideologia corporativa pode parecer pouco clara: ela não parece comunista, nem liberal, nem nacionalista, nem imperial. Trata-se antes de uma ideologia de "nash-ism", ou em português, de "nosso-ismo", em que subsídios, créditos e poderes são entregues aos "nossos".

Esse "nosso-ismo" não conhece fronteiras nacionais nem étnicas. O ex-chanceler de um país estrangeiro é alçado à condição de membro da corporação e torna-se "nosso homem na Europa." Enquanto isso, um empresário russo fundador de uma empresa que arrecadou bilhões para o Tesouro nacional vira um "outro" e é exilado nos confins da Sibéria.

Todo o poder do Estado russo é jogado a favor dos "nossos" membros da corporação, seja isso recusar permissão para o transporte de petróleo do Casaquistão para a Lituânia por gasodutos russos, cortar a eletricidade da Moldávia ou mover uma "guerra do gás" contra a Ucrânia. O imperialismo russo assumiu uma imagem nitidamente corporativa.

A marca do novo modelo é redistribuir recursos para "os nossos". O império da lei é para países civilizados. Práticas comerciais limpas são para países que querem se equiparar ao mundo desenvolvido.

Boas relações com países vizinhos são necessárias apenas se a Rússia estiver interessada em desenvolvimento no longo prazo. A corporação tem outros objetivos.

É só na Rússia que existe esse modelo? Não, há outros países assim: Líbia, Venezuela, Angola, Chade, Irã e Arábia Saudita. A Rússia é um deles agora. E esse modelo político-econômico pode durar muito tempo.

Em alguns países da OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo), esse modelo político-econômico sobrevive há um terço de século; na Venezuela, há meio século. Ele pode sobreviver mesmo sem os preços altos da energia. Cuba e Coréia do Norte têm modelos ainda mais impressionantes, e nem mesmo têm petróleo. E houve, claro, a versão soviética desse modelo.

Assim, de um ponto de vista histórico, não há nenhuma novidade no novo modelo russo. Mas optar por ele hoje, no início do século 21, não é mais que optar deliberadamente pelo modelo do Terceiro Mundo.

Mais precisamente, o modelo de um grupo muito específico de países do Terceiro Mundo cujas perspectivas de longo prazo são bem conhecidas a despeito de quanto dinheiro retirem do petróleo, de quantos oleodutos controlem em casa e no exterior, e de quantas histórias açucaradas contem na televisão.

É um beco sem saída histórico. Nenhum país que enveredou por esse caminho se tornou mais rico, mais forte ou mais desenvolvido. A Rússia não se tornará tampouco. Ela ficará muito para trás. E o preço será pago, como sempre, pelos cidadãos russos.

Numa democracia, a mudança política está vinculada à mudança de governantes que ocorre regularmente e com custo social mínimo. Em países com liberdade limitada, a mudança de governantes também ocorre - como na "revolução de veludo" na Checoslováquia e na "revolução laranja" na Ucrânia - mas os custos sociais são muito mais altos.

As medidas tomadas pela corporação para impedir uma revolução do gênero tornaram altamente improvável uma mudança na Rússia no curto prazo. Mas o poder mudará de mãos - mais cedo ou mais tarde. E quando isso acontecer, poderá não ser como veludo. Neste caso, o custo do país será incomparavelmente mais alto.

É difícil dizer quando ou como ocorrerá essa mudança de poder. Para os que não podem aceitar um Estado corporativo, ou a "venezuelização" da economia, ou a degradação da vida social, a situação atual parece aviltante: antes de poder haver uma ação, é preciso haver uma palavra, e os meios de comunicação de massa estão sob o controle da corporação.

Mas é possível começar a própria separação de semelhante Estado com uma campanha de não participação. Dessa maneira, trabalhando de baixo, pode-se começar a restaurar as liberdades civis, políticas e econômicas, liberdades que foram oferecidas aos cidadãos russos em 1905, 1917 e, de novo, em 1991, mas desperdiçadas.

Se formos bem-sucedidos, poderemos ter uma nova Rússia - livre, aberta e tolerante. Um país dinâmico, desenvolvido e sólido, apoiado nos próprios pés, genuinamente respeitado por seus vizinhos. Um país com um futuro. Um outro país.

TRADUÇÃO DE CELSO M. PACIORNIK

*Andrei Illarionov foi consultor econômico do presidente Vladimir Putin da Rússia até renunciar, em protesto, em dezembro. O artigo publicado pelo 'New York Times' é uma versão do que apareceu originalmente no jornal russo 'Kommersant'.

(O Estado de S. Paulo, Internacional, 12/02/206)

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